E se o Governo Lula não Mudar?

J. Carlos de Assis.
Economista e Professor.

Setembro de 2003. Eis como vejo o futuro próximo e o remoto. O Governo Lula está entre a alternativa de tolerar o aprofundamento da crise social em nome da segurança financeira, e a alternativa de tolerar o risco de uma crise temporária no balanço de pagamentos para enfrentar e reverter a crise social. No primeiro caso, ele conservará as bases da política macroeconômica em curso. No segundo, terá que inverter a política macroeconômica – baixar e até eliminar temporariamente o superávit primário, reduzir drasticamente a taxa de juros real para patamares internacionais e controlar o fluxo de capitais -, o que implicará uma virtual ruptura com o FMI e dificuldades óbvias de fechar o balanço de pagamentos.

Do ponto de vista estritamente econômico, a segunda alternativa, de vigorosa retomada do desenvolvimento, implicará sérios riscos em nossas relações financeiras internacionais. Sem o concurso dos capitais de curto prazo, o déficit em conta corrente se explicitará. Preventivamente, o Governo poderá adotar um rígido programa de substituição de importações e de novos estímulos às exportações, de forma a fechar o déficit sem a sangria das parcas reservas líquidas e sem apoio financeiro externo, pelo menos no primeiro momento. Se a estratégia funcionar no curto prazo, é possível que se estabilize um superávit comercial estrutural, concomitante com a retomada do crescimento interno.

Num contexto de crescimento, o país, por seu amplo mercado interno, poderá se constituir num atraente espaço para investimentos internacionais produtivos, de risco, que compensassem folgadamente a ausência de inversões especulativas de curto prazo. Internamente, como a situação de partida é de alto desemprego e elevada ociosidade na maior parte do parque produtivo (exceto no parque exportador e no petroquímico), não é de se esperar pressão inflacionária relevante, independentemente de déficits nominais. Na medida em que o programa avance, o crescimento induzirá a expansão da receita tributária, sem aumento de carga, de forma a progressivamente estabilizar a relação dívida/PIB, elevada eventualmente no início por força da redução do superávit primário.

Este, em síntese, é o cenário econômico da opção pela retomada, com todos os seus riscos. Agora vejamos o cenário da continuidade da política macroeconômica, pelo lado também de seus riscos específicos. Dado que o Banco Central não tem qualquer tipo de restrição na política monetária (ele já é independente, segundo o modelo de metas), qualquer possível crise cambial será enfrentada com elevação da taxa de juros, combinada ou não com elevação do superávit primário. Portanto, do ponto de vista econômico, não há risco de crise financeira externa. O superávit comercial, a despeito das oscilações do câmbio, está e pode permanecer num nível tranquilizador do ponto de vista do mercado financeiro. E o câmbio flutuante ajustará eventuais desvios na balança em conta corrente.

Também a volta de uma inflação alta não deve preocupar, pelos mesmos motivos: enquanto durar a recessão (e ela durará tanto tempo quanto durar a atual política macroeconômica), não há risco de inflação de demanda, e a inflação de custo (sobretudo de origem cambial e a resultante de indexação de preços administrados) continuará sendo eficazmente enfrentada, como tem sido até aqui, com mais elevação de juros, para forçar um realinhamento de preços relativos. Portanto, a economia já "aprendeu" a lidar com os riscos de crise externa e de crise inflacionária. Simplesmente acionam-se os mecanismos geradores de recessão e de desemprego, e tudo se ajusta num nível mais baixo de atividade econômica. Este padrão, portanto, é capaz de resistir a crises externas e a ataques especulativos. Quanto à crise social e de desemprego que a acompanha... bem, isto não diz respeito nem se inclui entre as preocupações da equipe econômica.

Qual das duas alternativas o Presidente Lula vai escolher? Do meu ponto de vista, ele vai insistir no modelo atual até ser confrontado com uma explosão de frustrações dos movimentos sociais. A razão é simples: a percepção de crises financeiras, e a reação a ela, é imediata, e tende a ser tratada segundo o padrão convencional da chamada responsabilidade fiscal e monetária, enquanto a percepção e a reação à crise social é mascarada pelo seu próprio ritmo lento de evolução, por sua opacidade e por sua viscosidade. Assim, poucos se dão conta de que a taxa atual de desemprego – 15% pelo Censo do IBGE de 2000, mais 13,5% de ocupados que ganham menos de um salário mínimo segundo a PME – já se encontra em níveis catastróficos por qualquer comparação internacional. Para citar apenas uma referência, é da ordem da maior taxa média de desemprego nos Estados Unidos e na Alemanha no pico da Grande Depressão dos anos 30 (26%)!

Esta comparação é relevante para a análise política prospectiva, pois foi sobretudo a alta taxa de desemprego nos principais países capitalistas, nas décadas de 20 e 30, que abriu quatro distintas avenidas de alternativas políticas no mundo: o fascismo italiano, o nazismo alemão, a social democracia sueca e o New Deal nos Estados Unidos. Obviamente que, a uma distância de sete décadas, as situações e as circunstâncias são diferentes, mas o fato relevante a reter, à margem da economia, é que situações sociológicas dramáticas produzem, cedo ou tarde, consequências políticas dramáticas. Já nos encontramos numa situação sociológica estrutural ativadora de mudanças políticas. O que falta são os catalizadores propriamente políticos da mudança. Eles aparecem cedo ou tarde. Eles, na verdade, já se revelaram em forma de vitória eleitoral de Lula em 2002 – ou essa vitória de Lula teria um significado social menor que vitória de Roosevelt nos Estados Unidos em 32?

O fato de Lula não querer assumir todo o papel de Roosevelt como um verdadeiro reformador da economia não significa que as condições sociológicas da crise brasileira não continuarão a agravar-se e a impulsionar mudanças políticas. Alguém ou muitos jurarão fazer pelas massas o que ele não quiser ou não souber fazer. Repita-se: com a atual política macroeconômica – especificamente, com superávit primário e juros reais nos níveis em que se encontram – não há perspectiva de redução efetiva do desemprego, quaisquer que sejam os esforços em políticas setoriais. As elites financeiras, as únicas beneficiárias deste modelo, acalentam o sonho de que Lula segurará a rebelião das massas. O próprio Lula pode ter essa ilusão. De La Rúa tinha. Aliás, também ele começou seu governo por "reformas" estruturais – entre outras, a compra de votos para a reforma trabalhista -, mantendo a economia no rumo neoliberal que lhe imprimiu Menem.

Assim mesmo, embora deseje ardentemente, não acho que Lula se antecipará preventivamente ao aprofundamento da crise. Sejamos francos: não tenho qualquer preconceito contra não economistas que cuidam de assuntos de economia1, mas o círculo decisório íntimo de Lula não tem um único formulador econômico – Palocci não é, assim como Dirceu, Gushiken, Dulci, Tarso, Frei Beto, etc. Obviamente, quando tomam decisão, chamam os assessores, e os assessores relevantes no caso são os de Palocci, recrutados entre ortodoxos delirantes do meio acadêmico. Certamente, existe o senador Mercadante. Mas se Mercadante não quis ir para o Governo é porque acredita que melhor ajuda ao Governo no Senado Federal.

Pode parecer arriscado sair do quadro de uma avaliação impessoal dos rumos do Governo, mas a observação de caráter pessoal da equipe é pertinente justamente porque uma mudança estrutural na economia - uma mudança não de política econômica, mas de economia política - requer uma tremenda segurança na decisão, uma segurança que poucos terão se não tiverem uma visão clara da realidade e das alternativas econômicas, dos riscos e das formas de superação. Infelizmente, Palocci não tem, e os outros ministros do círculo íntimo não têm obrigação de ter. E não porque lhe falta diploma de economista, mas pelas deficiências de um curso prático que simplesmente o encharcou de teoria neoclássica e de preconceitos neoliberais, conforme se pode deduzir da política que pratica e que vendeu a Lula, para Lula defender por ele.

Se o patriotismo costuma ser o refúgio dos canalhas, a ortodoxia e o conservadorismo são o refúgio dos economistas inseguros – e mais ainda dos não economistas que se colocam diante de decisões econômicas de destino. Onde há dúvida aposta-se no caminho sancionado pela sabedoria convencional dominante. No Brasil do Governo Lula, esta sabedoria convencional tem nome: chama-se Delfim Netto. É hoje o economista externo mais ouvido por Palocci e Lula, e é um conservador. Assim, não será do conselho político íntimo do Presidente que se vai esperar uma recomendação de ousadia, mesmo que a experiência internacional e do próprio País em outras eras indique que não se trata exatamente de dar um salto no escuro, como sugerem os doutrinadores do status quo. É risco, sim. Mas, guardadas as proporções, não é risco maior que organizar o movimento operário sob as botas da ditadura militar dos anos 70!

Se a mudança provavelmente não virá pelo conselho ao Príncipe, alguma mudança virá pela pressão da plebe. Resta saber se ela virá de forma orgânica ou não. No melhor dos casos, Lula se moverá pela intuição e se colocará na sua liderança, tentando costurar os pedaços de uma sociedade esgarçada a partir da inversão da política monetária-fiscal, sem o que não haverá recursos para nada. No plano econômico, o desafio e os riscos serão os mesmos: para mudar o eixo de acumulação do setor financeiro especulativo para o setor produtivo, há de se enfrentar as poderosas forças do "mercado" e seus feitores multilaterais, pois, visto de Washington ou de Nova Iorque, o Brasil não passa de um espaço de acumulação a ser mantido nas trilhas da economia "saudável".

Temo porém a irrupção da rebeldia e dos protestos inorgânicos, ou mesmo dos inicialmente organizados que se degenerem ao longo do processo de luta política. Por enquanto, quem se junta para reivindicar trabalho, terra e teto acredita basicamente num estado capaz de prover ou de criar as condições para que sejam providos trabalho, terra e teto. Estão nos movimentos dos sem terra, dos sem teto, nas periferias dos movimentos sindicais e populares, nas filas para emprego na Comlurb. Muitos têm liderança visível, carteira de identidade e um comportamento basicamente legalista. Em algum momento, pela falta de resultados objetivos, perderão as esperanças. E só quem acredita que a história acabou pode relaxar na ilusão de que a falta de esperança de hoje produza alguma coisa diferente da desesperança que foi a causa profunda do fascismo, do nazismo, do anarquismo e.... do comunismo em circunstâncias similares do século passado. O comunismo stalinista, este sim, parece que acabou, ou se tornou irrelevante. Mas terá acabado o instinto de preservação da vida e da dignidade humana?

São movimentos não ideológicos, não partidários, não facciosos. Buscam resultados. Esta é a cara dos únicos movimentos políticos que realmente crescem no Brasil contemporâneo, além dos evangélicos. Não são de esquerda, de direita ou de centro. É uma questão de busca direta de justiça social – ou de proteção divina. Na medida em que a preocupação com a justiça social seja identificada com a esquerda, pode-se talvez dizer que caminham pela esquerda. E só. Isso parece escapar a alguns analistas que tentam simplificar o processo dizendo que o Governo Lula está se identificando com o centro, convergindo com o PSDB, pela natureza mesma das funções de governo que exigem um certo equilíbrio entre extremos.

Isso, a meu ver, não tem sentido do ponto de vista da política econômica. Deste ponto de vista, o que desapareceu no mundo e no Brasil foi o centro. Não mais existe. O que existe é a ortodoxia liberal (a direita, se quiserem) e a heterodoxia keynesiana (esquerda). É o estado mínimo contra o estado regulado. Não há meio caminho entre os dois porque os ortodoxos, ou novos radicais, não aceitam nada que não seja o primado absoluto da propriedade privada, e qualquer tentativa de regulação é vista como um ataque à livre iniciativa – uma quebra de contrato, como dizem. Se quiserem usar a linguagem da topologia, não digam que Lula está caminhando para o centro. Ele está na direita liberal – e aí, sim, junto com o PSDB, o PFL, etc, etc, etc. Já a esquerda tradicional, social e partidariamente, é irrelevante, pois ainda está apegada aos signos ideológicos do passado e não entendeu o espírito atual das massas, que busca resultados: trabalho, terra e teto!

No círculo íntimo de Lula, Frei Beto é um dos poucos que costumam se atrever a vôos teóricos mais elaborados que apontam o modelo de sociedade que devemos perseguir. Acabo de ler um texto dele dizendo que Lula não foi eleito para fazer uma revolução. A mensagem é que, para governar, ele tem que conciliar – conciliar com todos, suponho, desde o Vale do Jequitinhonha à Avenida Paulista. O fantasma presente na imaginação de boa parte do círculo político presidencial é o fantasma de Allende, cujo erro teria sido justamente a não conciliação, confrontando os interesses econômicos dominantes em nome do socialismo. O que intelectuais soft como Frei Beto não compreendem é que há, sempre houve e até onde a vista alcança sempre haverá uma terceira via pacífica entre o capitalismo liberal e a coletivização revolucionária da propriedade – o caminho óbvio da social democracia real, um caminho que num livro de 2000 chamei de "quarta via", para não confundir com o neoliberalismo caricato, tão caro a Fernando Henrique Cardoso, que Tony Blair denominou de "terceira via".

Allende não perdeu o mandato e a vida porque buscava conscientemente uma terceira via, mas porque ficou esgarçado entre a direita liberal agarrada a privilégios e a esquerda ideológica que queria o socialismo imediato. Lula nunca correu esse risco, porque, ao que eu saiba, nem o PT nem qualquer outra corrente partidária relevante querem o socialismo imediato no Brasil. Ninguém espera dele uma revolução expropriadora da propriedade privada. Ninguém o pressiona para isso. Se ele, por causa dos fantasmas chilenos, escolheu o centro para não parecer de esquerda, nada mais fez que realizar um antigo sonho dos liberais radicais: controlar o povo através de um terceiro carismático, de forma a cumprir o destino do liberalismo sem travas dentro da boa ordem pública.

Li também um outro texto mais remoto de Frei Beto onde ele denuncia a social democracia (continuo falando da social democracia européia real, não das caricaturas) como uma tentação política a ser evitada. Não entendi bem o que ele propunha como alternativa, nem ele chegou a dizê-lo explicitamente, mas lendo o texto mais recente, confrontado com a política real de Lula, me vem à mente um mundo spenceriano no qual a riqueza insolente, dinheiro que cria dinheiro sem passar pela produção, deve ser respeitada (junto com os contratos) como uma graça de Deus; no qual os muito pobres têm a função precípua de estimular a virtude da caridade cristã (agora institucionalizada no Fome Zero), e no qual as classes intermediárias que se danem com seu intolerável espírito corporativista.

Escrevi em outro contexto que, por certo involuntariamente, o que a política de Lula expressa de forma objetiva é uma espécie de aliança entre a alta finança e a miséria assistida, enquanto no meio as classes médias vão sendo estranguladas pelo desemprego. Não tenho a menor simpatia pelos interesses corporativos que avançam sobre os interesses gerais, mas, no presente contexto, a mobilização de funcionários públicos e de sindicatos trabalhistas por trabalho e renda, na medida em que se traduz numa proposta de mudança da política econômica, representa legitimamente o interesse geral da nação. Esperar deles outra coisa é pretender que a espantosa lucratividade dos bancos e dos ativos financeiros seja de alguma forma compensada psicologicamente pelo Fome Zero. Ou que, em vez de olhar com inveja para cima, as classes médias devem olhar com piedade para baixo!

Lula não corre o risco de Allende. Ele pode vir a correr o risco de De La Rúa, embora, por enquanto, a melhor e mais próxima analogia de seu governo é com o governo de Lech Valessa, na Polônia. Como Valessa, Lula é um líder autêntico da classe operária que se afirmou nacionalmente na luta política, concorrendo decisivamente para a democratização do regime. Como Valessa, ganhou eleições presidenciais democráticas. Ainda como Valessa, se cercou de intelectuais progressistas, muitos deles católicos, para formar seu governo. E, como Valessa, se viu prisioneiro de uma economia política de favorecimento redundante aos ricos, monitorada pelo FMI. Quando saiu do governo, um tanto consternado com a própria performance, Valessa deu uma declaração penitente: "Não adianta ganharmos as eleições porque não conseguimos mudar as políticas públicas." Será este o destino também de Lula?

Os caminhos pelos quais uma situação sociológica próxima da convulsão social se transforma numa situação de convulsão social concreta são imprevisíveis. Mas pode-se fazer algum exercício com base em sinais precursores. Alguns imaginariam que isso só acontecerá com o desgaste completo da imagem de Lula diante da opinião pública, o que estaria longe de acontecer pelas pesquisas de opinião. Esquecem apenas de que o desgaste pode ser também uma consequência de focos de convulsão, não sua causa. Por exemplo: os sem-teto que invadiram em julho o terreno da Volkswagen em São Paulo, cerca de nove mil, se fossem menos organizados poderiam ter tentado resistir ao despejo. As consequências poderiam ficar fora do controle, e acabar em violência generalizada. Quais seriam, neste caso, as consequências para a imagem do Presidente?

No país dos massacres de Carandiru, Cinelândia, Eldorado de Carajás, tudo é possível acontecer quando se confrontam polícia e populares. O que o Governo Lula vai fazer na medida em que aumentem as invasões de terras rurais e urbanas? Ou alguém tem dúvida de que as invasões vão continuar e aumentar? Muitos desses líderes, com Stédile, são antigos companheiros de Lula na luta social, mas quem os conhece sabe perfeitamente que sua lealdade não é com Lula, mas com o movimento e seus objetivos concretos, apenas marginalmente ideológicos. Na medida em que, com a atual política macroeconômica, é financeiramente inviável acelerar a reforma agrária ou atenuar a crise habitacional, eles prosseguirão lutando com determinação pelo que acreditam ser seus direitos – assim como Lula, debaixo da ditadura, lutou pela liberdade sindical.

Se o ajuste fiscal impede que sejam atendidas objetivamente as demandas dos sem trabalho, terra e teto, os interesses econômicos dominantes vão exigir que sejam contidos, em nome da ordem pública e do sagrado direito de propriedade. O Governo, aliás, já se antecipou e deixou claro que agirá com energia. A sorte, pois, está lançada: por cima de uma situação sociológica estruturalmente explosiva, estão se movendo movimentos sociais determinados a perseguir suas demandas, e um Governo disposto a fazer valer a sua autoridade. Enquanto tudo acontecer no compasso ordeiro da direção do MST – invasão, liminar, desapropriação ou despejo, retirada -, haverá apenas tensão. Mas por quanto tempo? O MST controla todos os seus militantes? Os governantes controlam toda a sua polícia? Se não há controle, e aumentam as razões e as oportunidades de conflito, a teoria de probabilidade nos diz que o primeiro evento de sangue é apenas uma questão de tempo!

Além disso, esses são os movimentos explícitos, que ainda contêm algum grau de previsibilidade. Mas há muita coisa encoberta. Nos idos de 1978, testemunhei de um ponto de observação privilegiado as greves do ABC, que se tornariam históricas. Durante quarenta dias, elas se espalharam como rastilho de pólvora por São Paulo e pelo resto do País, de uma forma absolutamente surpreendente, pois os sindicatos estavam sob intervenção direta ou virtual. Os comandos de greve surgiam como cogumelos, à margem da estrutura sindical formal. A imprensa, como não conseguia explicar um movimento social daquelas proporções, não ideológico nem institucionalizado, começou a dizer que se tratava de greves "espontâneas". Depois das greves, fui como jornalista a São Paulo exclusivamente para conhecer e levantar um perfil de Lula. O movimento – disse-me ele, ao longo de uma conversa de quase um dia – tinha sido preparado em algumas empresas havia mais de um ano. Como um segredo de estado. Os poderosos tentáculos do "sistema" de informação da ditadura sequer se aperceberam deles, antes da eclosão.

As condições sociológicas de fundo que justificaram o sucesso dessas organização paciente foi o arrocho salarial (reajustes apenas anuais, quando a inflação já passava de 35%), insegurança de emprego e busca de liberdade política. É claro que a relação de emprego facilitava o trabalho de mobilização, mas, considerando a situação de hoje, se nove mil sem-teto aparecem do dia para a noite no terreno vazio da Volkswagen não estamos exatamente diante de uma mobilização espontânea. Dadas as condições sociológicas, a organização aparece. Também não adianta dizer que se trata de trabalho de oportunistas e agitadores, para desqualificá-lo, pois não houve oportunista mais sagaz que Lula quando ganhou as eleições prometendo a criação de dez milhões de empregos.

Para evitar a convulsão social, ou para regulá-la e revertê-la, o Governo Lula terá que dar um cavalo de pau, sim, na política econômica. Trata-se, sim, de uma revolução política. É que, para um liberal, não é menos que uma revolução política uma iniciativa de regulação do capitalismo na moldura social democrata, ou do estado do bem estar social, ou do estado desenvolvimentista. Entretanto, Lula poderá também recuar para uma ortodoxia cada vez mais extremada e apostar na estabilidade da repressão e dos cemitérios. E este é o pior dos mundos entre as possibilidades que nos esperam: um mundo que acha que o desemprego se deve ao baixo nível da educação ou ao número de horas da jornada de trabalho; um mundo que acha que a violência crescente é função da posse de armas de fogo; um mundo que acha que a miséria se deve à falta de generosidade social; um mundo de máximas mazelas sociais, infra-estrutura degradada e estagnação econômica, de um lado, e estado mínimo e lucro financeiro insultante, de outro.

Este mundo projeta cenários que escapam à previsão da Ciência Política. Pertence à Teoria do Caos.

1O fato político mais relevante que, a meu juízo, aconteceu na história do capitalismo foi o New Deal, e no New Deal o meu grande herói, além do próprio Roosevelt, não foi Keynes, como é de muita gente, mas Mariner Eecles. E Eecles, como Roosevelt, não era economista. Aliás, Eecles não tinha sequer curso universitário. Tinha a experiência de pequeno banqueiro no Meio-Oeste norte-americano e foi capaz de tirar da crise da Grande Depressão conclusões do mais elevado bom senso, que se tornariam pouco depois a agenda central do New Deal - que ele próprio ajudou a conduzir como presidente do FED, nomeado por Roosevelt.