Keynes, PAC e a
falácia da composição
Luiz F. de Paula
Frequentemente, economistas ortodoxo-liberais tem criticado o Plano
de Aceleração do
Crescimento (PAC) por ele representar um aumento da intervensão do
Estado na economia ao buscar acelerar o crescimento econômico, através
do aumento do investimento público e
privado, em infra-estrutura econômica.
Argumenta-se que um programa desta natureza não teria sucesso em
estimular o crescimento econômico, entre outros fatores, por duas razões
inter-relacionadas: 1) o crescimento econômico é um processo de
ampliação da capacidade produtiva, de expansão da oferta agregada, que
exige o aumento dos investimentos e da produtividade, e que não se
confunde com o aumento da demanda agregada; 2) como a soma das partes do
produto ou da renda agregada - consumo, investimento privado, gastos do
governo e exportações líquidas de bens e serviços - é igual ao todo, e
supondo que a renda e o produto são dados, logo o crescimento do
investimento privado só é possível com a redução nos gastos do governo,
no consumo privado ou nos superávits em conta corrente. Do mesmo modo, o
aumento no gasto público só seria possível com redução no consumo, no
investimento privado e/ou nas exportações líquidas. Não haveria como
escapar da "tirania de que a soma das partes tem que ser igual ao todo".
Como resultado desta argumentação, sustenta-se que somente uma redução
do Estado seria capaz de libertar verdadeiramente o espírito animal dos
empresários, fazendo crescer o investimento privado necessário para um
crescimento econômico maior e duradouro.
Tal análise é feita normalmente sob o manto de uma verdade absoluta,
inquestionável, tal
como uma Lei da Física. Argumento neste artigo que por detrás desta
abordagem está uma
determinada visão teórica, ou mais amplamente, uma certa visão de mundo,
mas que a economia - enquanto uma ciência social e moral - tem visões
diferenciadas sobre as questões relevantes,dependendo do paradigma
teórico/ideológico que está sendo adotado. Em particular, sustento que
os pressupostos acima, além de não poderem ser vistos como verdade
absoluta, são passíveis de questionamento.
O economista inglês John Maynard Keynes questionou o teorema que diz que
"a soma das partes tem que ser igual ao todo" chamando-o de "falácia da
composição", entendido como um argumento errôneo do ponto de vista
lógico que atribui uma característica das partes (e sua simples soma) ao
todo. Esta falácia é bastante comum na economia, quando os agentes
tentam transferir para o todo (a economia) aquilo que é verdadeiro para
a parte (os agentes).
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O despertar do espírito animal do empresário pode ser estimulado por
um ambiente seguro
para o investimento privado
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Um exemplo da falácia da composição é a idéia - bastante disseminada
no meio econômico - de que o crescimento da poupança individual leva
necessariamente a um aumento na poupança agregada. Keynes, neste
particular, mostrou que a causalidade entre poupança e investimento é
inversa: a decisão de investir antecede logicamente a criação da renda,
e esta, por sua vez, depende das decisões autônomas de gastos dos
agentes. Sendo válida a igualdade contábil entre poupança e
investimento, a poupança agregada só tem sentido ex-post, depois que a
renda foi criada. O que é fundamental é que as decisões de investimento
sejam tomadas, pois são essas que acionam o processo multiplicador de
renda na economia. Tais decisões dependem da expectativa do empresário
em relação do rendimento futuro de seus ativos de capital. Tais
expectativas, por sua vez, dependem daquilo que Keynes chamou de
"espírito animal", que relaciona-se ao grau de confiança que o
empresário tem nas suas expectativas em relação ao futuro, uma avaliação
em parte subjetiva.
A falácia da composição neste caso é supor que um aumento na poupança
dos agentes
(microeconômica) - ou seja, da fração poupada de sua renda - levará
necessariamente a um
aumento na poupança agregada da economia (macroeconômica). Naquilo que
ficou conhecido como "paradoxo da parcimônia", Keynes mostrou que toda
tentativa de poupar mais, reduzindo o consumo, age de tal modo sobre a
renda que acaba anulando a si mesma. Como no nìvel macroeconômico a
renda é determinada pelas decisões de gastos de todos os agentes
(indivíduos e firmas), se todos eles (ou parte importante deles)
resolverem diminuir seus gastos de consumo para poupar mais o efeito
final será uma redução na renda deles - de tal modo que a poupança
agregada continuará a ser exatamente igual a antes. O equívoco neste
caso é pensar a renda como dada, como algo estático.
O argumento de que a soma das partes (itens que compõem a renda) tem que
ser igual ao todo (produto e renda agregada) está baseado na chamada
"Lei de Say", que diz que "a oferta cria a sua própria demanda", ou
seja, a produção, ao renumerar os fatores de produção, gera uma
capacidade de compra exatamente suficiente para absorver a própria
produção. Logo, como o único limite para a demanda real é o volume da
produção, a economia tende a operar com pleno emprego dos recursos
disponíveis (ou a uma certa "taxa natural de desemprego").
Contrapondo-se à Lei de Say, Keynes, Kalecki e outros economistas
desenvolveram o "princípio da demanda efetiva", que diz que são as
decisões autônomas de gastos dos agentes que determinam o nível de
produção e emprego na economia. Nesta perspectiva teórica, fica claro
que a expansão da oferta agregada depende crucialmente do aumento da
demanda agregada, uma vez que as decisões de produção são feitas a
partir de expectativas de vendas futuras. E somente se os empresários
esperarem uma receita de vendas maior amanhã eles irão contratar mais
trabalhadores. O desemprego resulta, assim, da insuficiência da demanda
efetiva.
O despertar do espírito animal do empresário pode ser estimulado por
políticas econômicas
que criem um ambiente seguro para que o investimento privado se realize
- uma política de
juros baixo, uma política cambial que reduza a volatilidade cambial e
uma política fiscal
que privilegie uma expansão adequada do investimento público (Keynes
deve ficar se
contorcendo no seu caixão quando ouve economistas defenderem visões
simplistas de que uma mera redução do Estado ocasionaria a ignição do
espírito animal empresarial).
Procurei neste artigo explicitar ao leitor a minha visão de mundo da
economia. Conclamo que meus colegas economistas façam o mesmo; mas, por
favor, não venham com verdades absolutas.
Luiz Fernando de Paula é professor da Faculdade de Economia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e co-editor do livro
"Perspectivas para a Economia Brasileira" (EdUERJ).
Email: luizfpaula@terra.com.br |